quarta-feira, 19 de setembro de 2007

UM TIRO NO PÉ


Por Sergio Fontana

Dar um tiro no pé. Esta era uma prática não pouco comum no exército americano espalhado pela Europa Ocidental entre o verão de 1944 e a primavera de 1945. O objetivo imediato era livrar-se da frente de batalha e voltar direto para casa, o que inicialmente chegou a acontecer. Depois, com o aumento desproporcional dos “acidentes”, as causas dos ferimentos desse tipo passaram a ser investigadas de verdade, e se fosse comprovada a intenção do combatente em se ferir de propósito, esse depois de receber o tratamento médico adequado, voltava para o front, sujeito a enfrentar mais tarde uma Corte Marcial e suas conseqüências. Com o tempo a expressão passou a caracterizar uma intenção de enganar ou atingir alguém, que no final acaba prejudicando o próprio autor.
No Auxiliadora dos anos 70, segundo a minha própria avaliação, aconteceu o tal “tiro no pé”. A direção do colégio resolveu ignorar o fato de que turmas de uma mesma série, divididas em A e B, como era o nosso caso, eram como plantas iguais, cultivadas no mesmo local, mas com raízes independentes, e que cada uma tinha a sua própria identidade em função do longo período de convivência entre os colegas, onde as afinidades transformavam alguns em inseparáveis companheiros de jornada.
Fiquei surpreso ao descobrir, no início do ano letivo de 1975, que as turmas A e B do 2º Científico tinham sido mescladas. Uns iriam para lá e outros viriam para cá, o que significava - voltando ao caso das plantas – cortar um pedaço de uma e enxertar na outra, e vice-versa. Imaginei, no princípio, que a intenção dos padres era integrar as turmas, fazendo com que todos passassem a se conhecer melhor. Depois fui perdendo a inocência e concluí que o objetivo era bem menos nobre, e não se resumia apenas a reduzir as conversas em aula como resultado de um tímido relacionamento entre novos colegas. O propósito da coisa era dissolver as “panelinhas”, impedindo que o grande entrosamento entre parceiros de longa data, desse vazão a esquemas de cola, bagunça generalizada e atos de natureza subversiva, ou “vermelhicida” – como diria o Coronel Sinhozinho Malta (Lima Duarte, em Roque Santeiro, 1985).
Pois o tiro saiu pela culatra – uma variação mais popular do tiro no pé – e os padres, apesar de procurarem aprimorar o processo das trocas de turma, fazendo com que nós, os alunos, ocupássemos as filas de assentos em ordem alfabética, o que reduzia a probabilidade de vizinhanças entre alunos afins a simples ocorrências aleatórias, perderam a luta para o imponderável.
Poucas semanas foram necessárias para que o entrosamento entre os novos companheiros de classe e os remanescentes da antiga turma se impusesse ao natural. Do lado de lá da parede, os alunos do 2º A também se harmonizaram rapidamente. As duas turmas logo passaram a formar, por causa dessa integração forçada e dos antigos laços de camaradagem, uma única célula, aumentando ainda mais as preocupações da direção do colégio relacionadas a possíveis “insurreições”, incitadas pelos alunos do 2º Científico, que pudessem atentar contra as rígidas normas de disciplina da Instituição.
O apogeu dessa guerra velada foi a organização e efetiva realização, por parte dessas turmas, de um piquenique numa sexta-feira letiva, no final do mês de Outubro de 1975. Mas esse acontecimento inusitado cabe narrar em uma outra história.

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