domingo, 20 de janeiro de 2008

O BOLETIM


Por Paccelli José Maracci Zahler

Longe vai o tempo em que pisei em uma sala de aula pela primeira vez. Para ser mais exato, há 44 anos.

Eu tinha 6 anos de idade. Naquela época, só era possível entrar no Curso Primário com 7 anos. Se não estou enganado, havia uma Lei que proibia às crianças com idade inferior a 7 anos de entrarem no primeiro ano escolar.

O mundo estava passando por modificações profundas. Três anos antes, Yuri Gagarin havia se tornado o primeiro homem a conhecer o espaço e a descobrir que a Terra era azul. Eram comuns notícias, comentários e especulações a respeito do futuro das viagens espaciais, especialmente sobre a descida do homem na Lua, concretizada 5 anos depois.

O assunto começou a me interessar e a busca de livros e filmes a respeito nunca mais cessou. Queria aprender de tudo para poder dedicar-me à pesquisa espacial e, possivelmente, ir à Lua quando ficasse grande.

Minha imaginação era fértil. Eu olhava para o céu azul e ficava assim por horas a fio tentando descobrir o que haveria lá. À noite, minha atenção voltava-se para as estrelas. Como era possível que existissem tantas?

Lembro-me das primeiras estrelas que conheci. Foram as Três Marias, da constelação do Órion. Estávamos sentados no pátio, meu avô, minha avó, minha tia-avó, minha mãe e eu. Como toda a criança, eu ficava prestando atenção na conversa dos adultos. Sob um céu estrelado de verão, meu avô levantou sua cabeça para o céu, observando-o atentamente com seus olhos azuis e disse-nos que estávamos exatamente embaixo das Três Marias. Eu olhei para o céu e fiquei encantado. Foi a minha primeira descoberta!

Foi com o meu avô também que, em uma noite estrelada de São João, conheci uma estrela cadente. Estávamos sentados nos degraus da porta de sua casa, coincidentemente olhando para o mesmo ponto no céu, quando vimos um risco de fogo que logo se desfez. Perguntei o que era e meu avô me disse que era uma estrela cadente. Fiquei muito impressionado. Será que as estrelas podiam cair sobre a Terra?

Por essa época, meu pai concluía o Curso Ginasial e iniciava o Curso Científico. Influenciado por vê-lo estudando e fazendo trabalhos escolares, quis entrar logo para a escola. Lógico que isto não era possível pois eu não tinha a idade mínima para matricular-me conforme determinava a legislação vigente. Tanto insisti que minha mãe acabou entrando em acordo com a diretora da Escola São Benedito, mantido pelas freiras da Ordem do Sagrado Coração de Maria, conseguindo com que eu freqüentasse experimentalmente o Curso Primário.

Não é preciso falar da minha felicidade. Eu queria aprender tudo. Lembro-me muito bem do dia em que fui até o quadro-negro e pedi para a professora, a Irmã Glorina, para ensinar-me a fazer contas com x e y tal qual meu pai fazia e ela me respondeu que isso eu só iria aprender no Curso Ginasial. Fiquei um pouco frustrado porque já me sentia em condições de aprender Álgebra. Não gostava daquelas intermináveis e repetitivas continhas de somar.

Uma coisa no entanto me chamou a atenção - eu não tinha uma turma fixa! Às vezes, acompanhava a Irmã Glorina quando ela ia dar aula no segundo ano; outras, voltava para a turma do primeiro ano. Mesmo assim, não perdia uma aula!

Certa feita, eu estava na turma do segundo ano e a professora recomendou um livro didático. Guardei bem o nome pois não sabia escrever direito e pedi para a minha mãe adquirí-lo. Ela me disse que isso não seria necessário e eu não entendia o porquê, afinal de contas, eu não estava na escola? Ela acabou comprando. É uma pena que hoje, por mais que me esforce, não consigo lembrar-me do título daquele livro. Somente que haviam umas figuras de aviões, navios, cavalos, cachorros e crianças na capa. Na realidade, nunca o utilizei porque era adotado somente para a turma do segundo ano primário.

No final de março, tive que faltar a algumas aulas. O motivo? Nascera a minha irmã Marininha! Acredito que foi a primeira vez que pisei em um hospital - a Santa Casa de Caridade de Bagé, RS.

Minha mãe passou mal de madrugada. Meu pai saiu correndo para conseguir um carro para levá-la ao hospital. Como eu era o único filho, fui acordado de madrugada para ir também. Sob hipótese alguma me deixariam sozinho em casa.

No hospital, minha avó paterna já esperava pela minha mãe. Ela era parteira, trabalhava na Santa Casa de Caridade e acredito que estivesse de plantão naquele dia. Existem coisas que a criança vê e não entende e os adultos nunca se preocupam em explicar para ela.

Meu pai estava nervoso. Entre um cigarro e outro, levou-me para passear de elevador (um dos poucos em Bagé). Foi a primeira vez que entrei em um e sentia um frio na barriga cada vez que ele subia e descia.

Até hoje, porém, não descobri como que meu pai ouviu o choro da minha irmã recém-nascida de dentro do elevador. Ou foi instinto paterno ou foi um berro capaz de colocar todo o hospital em polvorosa? Eu não ouvi nada!

Minha mãe ficou algum tempo no hospital. O parto fora difícil e minha irmã nascera prematura aos 7 meses de gestação. Parte desse período coincidiu com a Páscoa. Em uma das minhas visitas, levei um ovinho de chocolate de presente para a minha irmã. Só não me conformava com o fato dela não ter idade para comê-lo. Todas as crianças não comiam chocolate na Páscoa?

Depois desse tempo, voltei para a escola com a novidade. Havia ganho uma irmã! Recebi cumprimentos da professora e dos colegas e tudo voltou à sua rotina normal.

No final do ano, não pensei duas vezes - fui buscar o meu boletim! Minha mãe me alertou que isso não seria necessário. Não acreditei nela e fui receber o meu boletim, afinal havia freqüentado a escola o ano inteiro e merecia recebê-lo.

A entrega dos boletins deu-se no pátio da escola. Todos os alunos estavam reunidos e divididos por turmas, dispostos em fila indiana. A madre diretora fez um pequeno discurso e foi chamando um por um. Todos receberam seus boletins, menos eu.

Esperei que tudo se acalmasse, fui até ela e cobrei:

- Madre, eu queria o meu boletim!

Ela disse:

- Oh, que gracinha! Vejam só, crianças, este menino veio buscar o seu boletim, só que ele nem idade tem para cursar o Primário. Toma um santinho, meu filho!

Peguei o santinho e me senti arrasado. Foi a primeira decepção da minha vida. Eu tinha me esforçado tanto, levantado cedo para assistir às aulas, faltado só em ocasiões excepcionais, para receber um réles santinho!

Não teve outro jeito a não ser esperar o ano seguinte quando fui aceito de verdade.

Na Escola São Benedito, fiquei até o quarto ano primário e dela guardo as melhores recordações da minha infância.

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